
AGÊNCIA CBIC
31/10/2011
Cidades espetaculosas
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31/10/2011 :: Edição 208 |
Jornal O Globo/BR 29/10/2011
Cidades espetaculosas
No Rio, durante a segunda metade do século passado, eram raros os empresários da construção civil que davam importância para a aparência externa das edificações. Diante de um mercado consumidor pouco exigente e preocupado apenas com o espaço interno das unidades privativas, o resultado não poderia ser outro, senão um conjunto de prédios desprovidos de qualquer preocupação estética. Nas duas últimas décadas, esse comportamento deu lugar a uma tendência de transformar as construções em ícones arquitetônicos exuberantes, especialmente na Barra da Tijuca. Aos poucos, esse conceito chegou às obras públicas e, com ele, a cidade passou a incorporar construções estilosas que desconsideram o contexto urbano onde se situam. Um exemplo evidente é a passarela da estação Cidade Nova do metrô carioca, com seus arcos e tirantes exagerados, comprometendo a paisagem histórica do Canal do Mangue e sua aleia de palmeiras imperiais.
A história das cidades demonstra que, com o passar do tempo, o que costuma perdurar é o conjunto externo das edificações, enquanto que os usos e as funções se modificam de acordo com as transformações sociais, econômicas e culturais. A prevalecer a atual tendência de tratar as edificações como objetos sujeitos a modismos insólitos e transitórios, não há dúvida de que, com o passar do tempo, a imagem da cidade se assemelhará a uma colcha de retalhos dissonantes. Se, ao contrário dessa tendência, as edificações apresentarem padrões de qualidade arquitetônica consistentes, não restará dúvida de que a integridade das construções será preservada, independentemente dos usos a que forem destinadas. No Rio, os prédios do antigo Paço Imperial, na Praça Quinze, do Centro Cultural do Banco do Brasil, na Candelária e do Palácio do Catete são exemplos de edificações históricas que tiveram seus usos alterados sem qualquer comprometimento do seu valor estético. Viena, Praga, Moscou, Paris, Londres e Nova York são cidades que souberam proteger a sua ambiência urbana da ação predatória das construções espetaculosas e esteticamente inconsistentes.
Atualmente, estamos convivendo com a influência das "cidades-espetáculo" concebidas exclusivamente para atrair turistas interessados em consumir as suas luxuosas ofertas lúdicas. Dubai e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, são exemplos paradigmáticos desse tipo de cidade. A forma como se dá a comercialização imobiliária nessas cidades inclui empresas de corretagem especializadas em adestrar o gosto dos futuros clientes aos seus extravagantes padrões estéticos. O deslumbramento com a sua aparência vem agregando, a cada dia, mais seguidores. Numa outra escala arquitetônica, encontramos, na periferia das grandes cidades, os imensos condomínios residenciais construídos em perfeita sintonia com os seus similares americanos. Portanto, não será surpresa encontrar, no Brasil, simulacros burlescos dos condomínios exibidos nos filmes "Beleza americana" e "O show de Truman". Vale a pena conferir. Nesse momento, diante da crise econômica mundial, cabe refletir sobre quanto tempo deverá durar a ciranda financeira que sustenta esses tresloucados empreendimentos imobiliários globais.
A verdade é que as sociedades estão se tornando cada vez mais dependentes dos padrões de consumo impostos através dos meios de comunicação. A aparente esquizofrenia em possuir, a qualquer custo, o último modelo de celular, de computador e de automóvel chegou ao mercado imobiliário transformando os imóveis em bens de consumo descartáveis. O insofismável processo de mercantilização da cidade se estendeu para além dos limites atribuídos à iniciativa privada. Também o poder público, na ânsia de se mostrar up to date, passou a realizar obras para despertar a atenção dos eleitores e atender a interesses injustificáveis. O recente projeto para implantação de um teleférico na favela da Rocinha – contrariando o plano diretor daquela localidade que prevê planos inclinados para o transporte de pessoas, carga e coleta de lixo – é um exemplo típico de demagogia política e desperdício de dinheiro público.
Com a repercussão dos grandes eventos esportivos, o Rio se transformou em palco para a atuação de grandes investidores. Entretanto, o caráter altamente especulativo dos investimentos financeiros internacionais exige que os governos assumam, de fato, o papel de mediadores dessa complexa engrenagem econômica e política. Caso contrário, a sociedade e o cidadão comum não passarão de meros espectadores diante da realização dessas vultosas obras públicas.
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