Artigo – Contribuições da nova Lei de Licitações para o enfrentamento da paralisação de obras
Angélica Petian é pós-doutora em Direito pela USP e sócia do Vernalha Pereira Advogados
De acordo com estudo publicado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2022, uma das principais instituições responsáveis pela fiscalização dos cofres públicos no país, 37% das obras públicas federais, cujo andamento era esperado à época da realização do estudo, estavam paralisadas (“Lista de Alto Risco da Administração Pública Federal: 2022”). O TCU indica como causas desse cenário: deficiência de projeto, insuficiência de recursos financeiros, baixa capacidade institucional de ente subnacional para conduzir empreendimentos e baixa confiabilidade nos sistemas de informação e gerenciamento. Desequilíbrios econômico-financeiros nos contratos e a homologação de preços inexequíveis também figuram entre as principais razões das paralisações.
Tendo em vista esse importante diagnóstico, já é hora de enfrentar as causas apontadas. Nesse sentido, a entrada em vigor da Lei 14.133/21, nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que substituirá a Lei 8.666/93, trouxe mecanismos que podem auxiliar no enfrentamento da questão – embora houvesse caminho para avançar mais, criando um ambiente de maior segurança aos contratados.
O Projeto que deu origem à nova Lei chegou a prever como condição para a expedição da ordem de serviço, para execução de cada etapa do objeto, o depósito em conta vinculada dos recursos para custear a respectiva etapa, a fim de garantir crédito para o pagamento. Essa medida certamente contribuiria para reduzir o número de contratos paralisados por falta de planejamento financeiro adequado. Embora esse ponto não tenha sido mantido, porque foi objeto de veto, a nova Lei criou outros mecanismos para mitigar alguns dos problemas decorrentes da falha de planejamento.
A nova Lei incorporou as figuras da contratação integrada e semi-integrada. No caso da contratação integrada, a Administração contrata não apenas a execução da obra, mas a elaboração dos projetos básico e executivo e eventuais serviços de montagem, teste, pré-operação e as demais operações necessárias para a entrega final do objeto. No caso da contratação semi-integrada, originária da Lei das Estatais – Lei 13.303/16, embora a Administração se responsabilize pela elaboração do projeto básico, compete ao contratado desenvolver o projeto executivo e executar obras e serviços de engenharia e tudo mais que seja necessário para a conclusão do objeto.
Com a adoção destes novos regimes de execução, que permitem ao particular contribuir com o desenvolvimento do projeto, deve haver uma diminuição de problemas de execução contratual relacionados a falhas nos projetos de engenharia.
A nova Lei também intensificou a aposta no bom planejamento das obras, por meio da indicação de critérios rígidos a serem seguidos no anteprojeto, projeto básico e projeto executivo. Maior controle do projeto pode ser uma boa fórmula para evitar eventuais desequilíbrios econômico-financeiros do Contrato, que acabam se refletindo em aditamentos, prorrogações e paralisia na execução das obras.
No anteprojeto elaborado pela Administração, devem constar os referenciais mínimos para confecção do projeto básico. Entre outras coisas, o anteprojeto deve se preocupar com as justificativas para a obra face a experiências anteriores, assim como com os parâmetros mínimos a serem obedecidos para atender ao interesse público. No projeto básico, por sua vez, a Lei se preocupou ainda mais com as condições de execução, prevendo, por exemplo, que sejam apresentadas as soluções técnicas globais e localizadas, em detalhes, de modo a evitar reformulações ou variações de qualidade, preço e prazos definidos. No projeto executivo, devem constar todos os elementos para execução completa da obra, de modo ainda mais detalhado do que no projeto básico.
A adoção das contratações integrada e semi-integrada não é, no entanto, tábua de salvação. Dados de auditoria feita pela Controladoria Geral da União, compreendendo os processos de contratação no Regime Diferenciado realizados pelo DNIT entre 2012 e 2014, revelam que 42% das contratações foram mal sucedidas[1].
Para além de o particular assumir mais riscos na contratação, o que pode inibir a participação, a orçamentação feita pela Administração a partir de anteprojetos tende a ser mais imprecisa, podendo gerar preços de referência destorcidos em relação à realidade e culminar em processos fracassados ou em contratos que não atinjam o termo final.
Outra estratégia para conter problemas durante a execução contratual pode ser identificada na fixação de critérios restritos para comprovação da exequibilidade da proposta. A nova Lei tem como uma de suas premissas evitar que propostas não sustentáveis economicamente sejam contratadas pela Administração. Tratando-se de obras e serviços de engenharia, são tidas como inexequíveis as propostas inferiores a 75% do valor orçado pela Administração. A princípio, tais propostas deveriam ser desclassificadas sumariamente.
A questão, porém, continua sensível, pois as instituições encarregadas da fiscalização dos cofres públicos costumam entender que os patamares de exequibilidade não são absolutos. Para o TCU, sendo a presunção de inexequibilidade relativa, a Administração deve dar oportunidade para que o particular demonstre que sua proposta é realizável (Súmula 262/2010). Na prática, esse entendimento, que vem sendo reiterado desde então pela instituição e por outros atores públicos ao redor do país, acaba favorecendo o triunfo de propostas subdimensionadas, que acabam por aumentar o estoque de obras paralisadas.
Esse é um ponto que merece atenção. A letra do § 4º do art. 59 da Lei 14.133/2021 prescreve que, no caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração. Trata-se de uma presunção absoluta de inexequibilidade que ampara o agente público a desclassificar a proposta e a deixar de perseguir o mito do menor preço. Aliás, o art. 11 da nova Lei coloca entre os objetivos do processo licitatório a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública (e não o de menor preço) e, ainda, evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis.
Não obstante a clareza da prescrição legal, é provável que os órgãos de controle mantenham o entendimento quanto à relatividade da presunção, aniquilando o ganho da nova lei e perpetuando a busca pelo menor preço a qualquer custo. Consequência desse entendimento é a ineficácia da licitação e contratação por não se entregar o bem objeto do ajuste à população.
A regulamentação infralegal poderia adentrar no tema, reiterando a natureza absoluta da presunção, e, com isso, dar mais um passo no enfrentamento do problema sobre a paralisação de obras, que já foi devidamente diagnosticado, mas que parece ainda longe de ser solucionado.
[1] Disponível em https://cbic.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Relatorio_RDC.pdf.
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