Artigo – Um novo mercado para o saneamento
Fernando Vernalha é doutor em Direito e sócio do Vernalha Guimarães e Pereira Advogados
A Lei 14.026/2020 introduziu modificações importantes em leis que disciplinam os serviços de saneamento no Brasil. Com ela, instituiu-se um novo marco legal para o saneamento, alterando a forma de regulação do setor. Seu principal objetivo é avançar com a agenda de universalização do serviço. Afinal, os dados atuais são dramáticos: aproximadamente metade da população brasileira não tem acesso à rede de esgoto; R$ 35 milhões de brasileiros ainda não têm acesso a água tratada. A agenda para a ampliação da oferta dos serviços de tratamento de resíduos sólidos também se ressente de falta de planejamento e investimento. É um diagnóstico triste, discrepante de outros setores da infraestrutura brasileira, e que exige uma mudança de rumo na operação do saneamento.
Esta mudança de rumo é buscada pela nova legislação a partir de três importantes mudanças no regime do saneamento.
Em primeiro lugar, pela proibição a que novos contratos de programa sejam celebrados sem licitação entre municípios e as companhias estaduais. A partir dessa vedação, à medida que os atuais contratos de programa se encerrem, os municípios que não pretenderem prestar esses serviços serão obrigados a licitar a sua contratação. Com isso, cria-se um ambiente competitivo para que operadores públicos e privados possam disputar os contratos, favorecendo condições mais econômicas e eficientes para a prestação do serviço. Lembre-se que hoje os operadores privados respondem por 6% da operação do saneamento, mas por 20% do nível de investimento que é implementado (Panorama).
Embora objeto de veto presidencial, havia uma regra da versão do PL aprovado no Congresso Nacional que previa a possibilidade de que os contratos de programa atuais fossem renovados por mais 30 anos. Há especulação sobre uma possível derrubada desse veto, o que reabriria a possibilidade para a referida renovação dos contratos de programa vigentes. Isso poderia retardar a “abertura do mercado”. Mas a nova lei exigiu que os contratos de programa em vigor incorporem, até 31 de marco de 2022, metas de universalização “que garantam o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos”. Além disso, também é obrigatória a incorporação de metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento. Essas adequações podem dificultar a sobrevida destes contratos, dada a incapacidade de muitas companhias estaduais em implementar os investimentos necessários para tal. A nova legislação exige, inclusive, que os operadores demonstrem a sua capacidade de promover esses investimentos, seja por meio de recursos próprios, seja por meio da contratação de dívida (a metodologia para isso será disciplinada por decreto).
Em segundo lugar, a nova legislação acolhe um novo modelo para a regulação do saneamento. Ela atribui à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) competência para instituir “normas de referência” sobre o serviço de saneamento, para serem seguidas pelas agências regionais ou locais e pelos entes titulares. Sem impor uma regulação nacional em detrimento da regulação regional ou local, a legislação pretendeu induzir a sua observância pelos entes titulares e demais reguladores. Substitui-se o enforcement por um soft law, fazendo uso do spending power da União: os entes que não tiverem adesão às normas de referência editadas pela ANA estarão privados do acesso a recursos públicos e financiamentos federais. A ideia de prover uma regulação nacional de referência para o saneamento parece fazer todo o sentido. A regulação atual é fragmentada, heterogênea e, em muitos casos, de baixa qualidade. A sua uniformização reduzirá custos de transação dos operadores e contribuirá para encorajar a participação privada no setor.
Por fim, a nova lei deu ênfase à “prestação regionalizada” do saneamento. O objetivo foi evitar tanto quanto possível que a operação do serviço seja conduzida individualmente pelos municípios, desconsiderando-se as implicações regionais. Num contexto de abertura do mercado a operadores privados, a regionalização inibe o fenômeno do cherry picking (a escolha seletiva pelo mercado apenas dos bons negócios), viabiliza subsídios cruzados entre operações rentáveis e deficitárias, e contribui para a universalização do serviço em regiões menos favorecidas.
Todas essas inovações conduzirão à “abertura” do mercado de saneamento a operadores privados, a partir de condicionamentos que garantam uma operação eficiente e regional do serviço. Apesar de conter diversos defeitos de técnica legislativa (algumas regras têm redação sofrível), a nova legislação representa uma evolução sem precedentes para o setor de saneamento no Brasil. Espera-se que ela consiga contribuir para o avanço da agenda de universalização do saneamento. E, para isso, a participação do setor privado será fundamental.
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