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26/08/2021

Artigo – ESG e o Jurídico

Fernando Guedes Ferreira Filho é a advogado, vice-presidente da Área de Política de Relações Trabalhistas da CBIC

Há alguns dias li um texto interessante na Época Negócios (“Seria o jurídico o ‘ponto cego’ do ESG?”, do professor Heiko Hosomi Spitzeck, da Fundação Dom Cabral[1]). Fala sobre a atuação dos advogados, como consultores, como executivos ou como patrocinadores de ações judiciais e aplicação dos preceitos ESG. A leitura cumpriu com o seu papel – ao menos comigo – de levar a algumas reflexões.

O ESG (Enviromental, Social and Governance), mencionado a primeira vez na publicação Who Cares Wins, de 2004, traz preceitos da atuação da empresa em três pilares de atuação: meio ambiente, social e de governança corporativa. No mundo, cada vez mais, empresas são avaliadas sobre esses critérios, sobre como atuam com comunidade, as ações de preservação do meio ambiente sustentável, como tratam com diversidade de gênero, cor ou raça, como aplicam as leis trabalhistas e garantem trabalho digno a seus colaboradores e qual a força de sua governança e a observância de valores e princípios de integridade para a prevenção de desvios éticos e de corrupção, bem como para evitar o uso indevido de dados de seus clientes, fornecedores e colaboradores.

Nesse momento, a Comissão de Valores Mobiliários está em processo de alteração da Instrução CVM 480/09, para determinar às companhias emissoras a divulgação de informações mais detalhadas sobre questões socioambientais e de governança corporativa.

Instituições financeiras, nacionais e internacionais, já analisam a atuação em preceitos ESG nas empresas que demandam financiamentos. Governos também fazem essa análise quando da contratação de fornecedores de bens e serviços.

A implementação dos preceitos ESG é irreversível, é uma mudança de cultura muito significativa, e alcançará não somente as companhias abertas, emissoras de valores mobiliários, mas também as empresas de capital fechado, limitadas, independente de seu porte.

Dito isso, voltamos ao papel do jurídico nas empresas. Com a implementação da cultura ESG, como deverá atuar? Coloca-se aqui duas questões para análise:

A primeira é se o jurídico permanece como órgão de consulta na organização ou passa a ter poder de decisão.

A segunda, como enxergar a chamada “cultura do conflito”, em muito vista entre os advogados?

A conclusão é que o advogado, especialmente o corporativo, passa a ter mais funções executivas e decisórias. Passa a ser fundamental sua ação para a implementação dos preceitos socioambientais e de governança. A grande demanda por profissionais do meio jurídico para exercerem papeis relevantes na controladoria ou como encarregado de dados (governança de dados e aplicação da LGPD) mostra essa tendência.

A questão não pode ser analisada sem verificar outras culturas muito enraizadas no ambiente de negócios brasileiro, especialmente pela atuação – muitas vezes subjetiva – de agentes públicos. Em várias situações a empresa é arrastada para um conflito judicial, seja pela interpretação e contratos e normas, seja para a recomposição de preços. Outro exemplo está na aplicação do cipoal de normas ambientais, cuja competência é compartilhada entre os três entes federados, o que leva muitas vezes à sobreposição de regras, tendo como natural consequência a dificuldade de sua interpretação e aplicação. Por isso, muitas empresas sequer conseguem implementar as disposições regulamentares e acabam por infringi-las, mesmo não tendo intenção alguma de fazê-lo. Nesse momento o jurídico é acionado.

No lado “S” do ESG temos a aplicação das normas trabalhistas. Talvez a primeira regra de ESG normatizada no Brasil: a Resolução nº 3.876/2010 do Conselho Monetário Nacional (CNM), que proibiu instituições financeiras brasileiras de oferecer qualquer modalidade de crédito rural a pessoas físicas ou jurídicas inscritas no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo (conhecida como “lista suja”). Condição posteriormente estendida a qualquer empresa que pretenda ou faça uso de recursos públicos, diretos, por linhas de créditos especiais ou por meio de fundos específicos.

O conceito de “trabalho análogo a escravo” que vem da legislação penal e normatização trabalhista, é muito subjetivo, levando a interpretações diversas e, consequentemente, aplicações diversas, o que também atrai a atuação do jurídico para a defesa da empresa.

Fato é que a dita cultura atribuída ao jurídico muitas vezes é reativa a uma ação, especialmente governamental e, como já dito acima, sem a menor intenção infringir qualquer norma. Ocorre que o mero questionamento de um ato imposto pelo administrador público pode acabar sendo considerado como uma ofensa a um preceito ESG, prejudicando a empresa. Nesse momento, o jurídico recebe a pecha de “patinho feio”, a área da empresa que estimula o conflito, que não quer aplicar os preceitos. Percepção completamente errada, mas recorrente. O que se deve ter em mente é o contrário: o jurídico, como área estratégica da empresa, tem papel fundamental na aplicação dos princípios ESG. O que é chamado de cultura de conflito nada mais é do que defender os interesses da empresa, inclusive e especialmente para a aplicação dos preceitos socioambientais e de governança. Sem adequada orientação e atuação jurídica, a empresa pode – mesmo sem intenção, insiste-se – deixar de atuar como a sociedade espera.

[1] https://epocanegocios.globo.com/colunas/Proposito-nos-Negocios/noticia/2021/03/seria-o-juridico-o-ponto-cego-do-esg.html

*Artigos divulgados neste espaço são de responsabilidade do autor e não necessariamente correspondem à opinião da entidade.

 

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