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07/12/2018

A destruição criativa da democracia

Leonardo Barreto, cientista político e consultor da CBIC

Em 1835, o filósofo francês Alexis de Tocqueville publicou seu mais famoso trabalho, A Democracia na América. O livro, um relato empírico da nova organização política experimentada nos Estados Unidos, se tornou a certidão de nascimento daquele país e o estalo para a retomada ideológica da democracia no mundo, após sua rápida aparição na Grécia Antiga.

O que chamou atenção de Tocqueville – e de toda a Europa, onde o livro teve um impacto avassalador – foi a construção de uma sociedade sem as amarras das tradições feudais, que dividiam as pessoas em castas definidas. O Novo Mundo dava berço a uma experiência francamente nova: o regime da liberdade negativa.

A liberdade negativa refere-se ao espaço privado das pessoas – que depois foi estendido para os negócios – que devia ser protegido da interferência de outros indivíduos e, principalmente, do Estado. Daí surgem inúmeras conceitos liberais, como o controle do poder público, a liberdade individual, a livre iniciativa, entre outros. A combinação entre igualdade (ausência de privilégios) e liberdade (de iniciativa) é uma sociedade equilibrada entre o público e o privado.

Há riscos. Para Tocqueville, a escravidão era a principal ameaça à utopia americana, pois ela constitui uma desigualdade fundamental, difícil de ser removida. Outra ameaça era a indiferença. Sumindo os laços de dependência entre servos e senhores, também deixava de haver as obrigações mútuas inerentes àquela ordem imutável, que prendiam, mas que também davam segurança.

A liberdade pós-feudalismo permitiu perguntar às criançaso que elas seriam quande crescessem. Mas também lançou este novo homem na solidão típica das comunidades com laços enfraquecidos, do cada um por si, mesmo o Estado ofereço alguma proteção.

O trabalho duro para sobreviver desinteressa o homem dos assuntos públicos, alertava Tocqueville. E, como não há cadeira vazia em política, o egoísmo dos indivíduos, mesmo que bem justificado, retira os cidadãos dos debates e afrouxa o controle social. Um número cada vez menor de pessoas passa a decidir sobre um conjunto maior de coisas, abrindo espaço para o abuso de poder e suas variações, o privilégio e a corrupção.

Olhando para o Brasil, através da lente de Tocqueville, chama logo atenção a ausência histórica de controle do poder estatal, de igualdade de condições e participação efetiva da maioria da população. Percebe-se claramente a correlação negativa entre poucos períodos de democracia e desequilíbrios profundos e persistentes.

Menos de 10% da história brasileira é democrática: 48 anos para ser exato. Dezoito anos entre 1946 e 1964 e três décadas de 1998 para cá. Por isso, encará-la de frente desafia tanto as instituições. Ela é barulhenta, caótica e diversionária, propondo novas regras a jogadores antigos. Uma verdadeira “destruição criativa”, como diria outro teórico importante da democracia, o economista Joseph Schumpeter.

Não se deve estranhar, portanto, que notemos mais o que cai do que o que é erguido. As reformas, o combate de corrupção e a desregulamentação dos negócios são faces da mesma moeda. Uma realidade, “providencial, irresistível e para a qual contribui todos os acontecimentos”, para usar as palavras Tocqueville , que aqui soam como sentença ou profecia.

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