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14/07/2020

Artigo: A execução do crédito com garantia fiduciária e a relação de consumo

Melhim Chalhub é advogado, parecerista, membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (Ibradin) e do Instituto dos Advogados Brasileiros e da Academia Brasileira de Direito Civil

O Superior Tribunal de Justiça selecionou para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos o Recurso Especial nº 1.871.911-SP.

Trata-se de ação de resolução de contrato de compra e venda de imóvel e financiamento com pacto adjeto de alienação fiduciária, proposta pelo devedor fiduciante sob alegação de incapacidade de pagamento, fundamentando-se em que a caracterização do negócio como relação de consumo oriunda de contrato de adesão lhe conferiria direito de denúncia do contrato e de restituição parcial das quantias pagas.

O pedido foi julgado improcedente por falta de interesse processual, já que a operação de crédito não é passível de resolução, de que trata o art. 475 do Código Civil, mas, sim, de execução do crédito seguida de excussão do imóvel nos termos do art. 27 da lei 9.514/1997.

Confirmada a sentença em recurso de apelação, sobreveio o mencionado Recurso Especial, selecionado como representativo de controvérsia, tendo em vista a grande quantidade de processos em que se discute o modo de extinção forçada do contrato de crédito com garantia fiduciária, destacando-se que só no Tribunal de Justiça de São Paulo foram “analisados 160 reclamos por esta matéria em 2019 e cerca de 80 apenas nos 3 primeiros meses de 2020, o que indica importante aumento em seu impacto social e econômico”.

Colocam-se, de um lado, a jurisprudência já sedimentada do STJ, segundo a qual a execução do crédito garantido por propriedade fiduciária de imóvel sujeita-se ao rito especial dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/19971, que contempla a excussão do imóvel em leilão e a restituição do saldo, se houver, ao devedor, e, de outro lado, decisões divergentes das instâncias ordinárias, que julgam procedentes pedidos de resolução de operação de crédito fiduciário, com fundamento no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor (CDC)2 e na Súmula 543/STJ3, impondo ao credor fiduciário a restituição de quantia arbitrada pela sentença, independente de leilão. Fundamentam-se essas decisões divergentes, não raras vezes, na caracterização dessa operação de crédito como “relação de consumo e contrato de adesão”, que conferiria ao devedor fiduciante direito potestativo de “postular a rescisão da avença, em virtude de sua incapacidade financeira para continuar honrando as parcelas”4 ou mesmo em virtude de desinteresse em continuar no contrato.

Nesse contexto, não se questiona a incidência das normas do CDC nos contratos de promessa de compra e venda e de crédito com garantia fiduciária, quando caracterizem relação de consumo, pois, sendo lei geral de proteção dos consumidores, esse Código incide sobre qualquer contrato nos aspectos correspondentes à relação de consumo5.

Os casos de aparente antinomia entre o CDC e normas de lei especial são solucionados com base nos critérios da especialidade e da cronologia6, prevalecendo a lei especial sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, como definido na tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 636.331-RJ, com repercussão geral7. Logo, também não se questiona a prevalência da lei 9.514/1997, que tipifica o contrato de alienação fiduciária de bens imóveis, sobre o CDC naquilo que tem de peculiar, por ser lei especial e posterior a esse Código.

O que se questiona são os efeitos do art. 53 do CDC, que é o fundamento invocado pelas decisões que justificaram a afetação do REsp 1.871.911-SP para substituir o procedimento de execução do crédito fiduciário pela ação de resolução do contrato de crédito fiduciário e para condenar o credor fiduciário a restituir quantia fixada em sentença (Súmula 543/STJ), negando vigência ao § 4º do art. 27 da lei 9.514/1997, segundo o qual a restituição ao devedor fiduciante corresponde ao saldo, se houver, do produto da excussão da garantia.

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1 “A lei 9.514/1997, que instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis, é norma especial e também posterior ao Código de Defesa do Consumidor – CDC. Em tais circunstâncias, o inadimplemento do devedor fiduciante enseja a aplicação da regra prevista nos arts. 26 e 27 da lei especial. 3. Agravo interno não provido”. (REsp 1.822.750-SP, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 20.11.2019). “Recurso Especial. Direito civil e processual civil. Compra e venda de imóvel. Alienação fiduciária de bem imóvel. Pedido de resolução. Desistência da compra e venda. Restituição dos valores pagos. Prevalência das regras contidas no artigo 27, §§ 4.º, 5.º e 6.º da lei 9.514/97 em detrimento da regra do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor. Precedentes. Recurso especial provido”. (STJ, 1773047-SP, rel. Ministro Paulo de Sanseverino, DJe 22/5/2020).

2 Lei 8.078/1990: “Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado”.

3 Súmula 543/STJ: “Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento”.

4 Veja-se, a título de ilustração, acórdão que acolhe pretensão de “rescisão” de compra e venda com financiamento e pacto adjeto de alienação fiduciária mediante aplicação da Súmula 543/STJ, relativa à promessa de venda: “Apelação – Compra e venda com alienação fiduciária em garantia rescisão contratual motivada pelo desinteresse do adquirente parcial procedência – Inconformismo da ré Acolhimento em parte. Deve ser afastada a tese das rés de impossibilidade da rescisão do contrato, com base na submissão a regime jurídico específico da lei 9.514/97 – Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, ainda que adquirido o imóvel com cláusula de alienação fiduciária – Propriedade não consolidada em nome da vendedora e credora fiduciária Possibilidade de o adquirente pleitear a rescisão do contrato com restituição das quantias pagas – Súmulas nº 543 do STJ e nº 1 do TJ/SP – Restituição das partes ao estado anterior – Devolução dos valores pagos, com retenção – Sentença que determina a devolução de 90% dos valores pagos – Acolhida em parte a pretensão da ré para majorar o percentual de retenção – Caso concreto que demonstra ser razoável a retenção de 20% dos valores pagos a título de indenização pelas despesas geradas, segundo entendimento do STJ e precedentes desta C. Câmara. Deram provimento parcial ao recurso”. (TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 1007132-43.2016.8.26.0451, rel. Des. Alexandre Coelho, DJe 13/3/2019).

5 MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 5. ed., 2005, p. 618.

6 “O CDC, como lei geral de proteção dos consumidores, poderia ser afastado para a aplicação de uma lei nova especial para aquele contrato ou relação contratual (…). Sendo assim, quanto mais específica for a norma do CDC e mais específica for a norma ‘contrária’ da lei nova, maior a probabilidade de incompatibilidade, e, então, é de ser afastada a aplicação do CDC para aplicar-se a lei nova”. (MARQUES, Cláudia Lima, Contratos …, cit., pp. 632-633).

7 Ao apreciar aparente conflito entre as normas gerais do CDC e as da Convenção de Varsóvia, que se classifica como lei ordinária especial, a respeito de indenização por extravio de bagagem, o Supremo Tribunal Federal, no RE 636.331-RJ, com repercussão geral, fixou tese segundo a qual “devem prevalecer, mesmo nas relações de consumo, as disposições previstas nos acordos internacionais a que se refere o art. 178 da Constituição Federal, haja vista se tratar de lex specialis”.

 

*Artigo publicado no dia 8/7, na Coluna Migalhas Edilícias.

**Artigos divulgados neste espaço não necessariamente correspondem à opinião da entidade.

 

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