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29/04/2019

Artigo: A evolução da contratação imobiliária e importância do judiciário na aplicação da Lei 13.786/2018

Raul Amaral Júnior é sócio sênior da R. Amaral Advogados, secretário geral do Conselho Jurídico (Conjur) da CBIC e consultor do Sinduscon-CE

 

*O assunto, bastante controverso e importante para o setor da construção, integra pauta do 91º Encontro Nacional da Indústria da Construção (Enic), que será realizado de 15 a 17 de maio, na Barra da Tijuca (RJ). Inscrições no site.

Na sociedade contemporânea, o Poder Judiciário tem exercido um protagonismo cada vez mais acentuado, devido à sua atuação como um agente de controle das normas e a valoração destas diante do caso concreto. Em função disso, a busca pela segurança jurídica nas decisões judiciais tem sido mais intensa, diante da pluralidade de entendimentos muitas vezes dentro do mesmo espaço territorial, e, não raro, com interpretações dos comandos legais diametralmente opostas.

Com objetivo de retratar a evolução da sociedade e suas relações interpessoais, e, ainda, dar maior uniformidade, rapidez e eficiência à atuação judicial, as reformas das leis codificadas estão a criar inúmeros novos institutos, que visam a pacificar os entendimentos no âmbito do Judiciário. Por isso, criaram-se as Súmulas, os recursos repetitivos e, finalmente, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, inovação essa trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, para tornar o entendimento dos julgados mais uniforme, e mais respeitoso ao texto de lei.

O provocado protagonismo do Judiciário nessa crise de representatividade eleitoral pela qual passa o Brasil, muitas vezes, é incorporado pelo excesso da atividade judicante quando age de forma desarrazoada, resultando, por consequência, em uma – ainda que involuntária – substituição do exercício do parlamento. É o ativismo judicial tomando o lugar dos legisladores.

E a ocupação do espaço normativo por parte do Judiciário demanda uma resposta equivalente do Legislativo, para que sejam equilibradas as forças de poderes independentes, sem conflitos de competências constitucionais e impedindo maiores traumas sociais. Porém, entendimentos equivocados por parte dos julgados, ainda que em instâncias superiores, vêm sendo repetidos, e vão se consolidando nos tribunais, ao longo do tempo, com o jargão jurídico de jurisprudência pacificada ou jurisprudência uníssona, e que, não raro, contrariam o comando legal tido como a correta leitura da vontade popular retratada na vigência da lei.

Verificam-se exatamente essas situações no segmento imobiliário com o tratamento judicial que vem sendo dado para os distratos, desconsiderando a correta hermêutica jurídica, com graves equívocos nas interpretações dos textos da lei, mormente em relação aos contratos de aquisição imobiliária.

Nesse contexto, a título de exemplo dessas distorções judiciais, verifica-se que a preocupação com a proteção ao adquirente nessa seara não é uma novidade que surgiu com o advento do Código de Defesa do Consumidor; a própria Lei da Incorporação Imobiliária (Lei 4.591/64), muito anterior, foi criada como um meio de regulamentar a figura do incorporador – até então não formalizada – e reger a relação deste com os compradores das unidades autônomas, tendo em vista a demasiada insegurança jurídica que pairava sobre essa relação negocial, naqueles tempos.

Foi justamente nesse contexto de garantir a segurança dos contratantes que foi atribuído à contratação da atividade comercial da incorporação imobiliária o caráter de irrevogabilidade e de irretratabilidade. Todavia, com o advento do diploma consumerista, foram surgindo deturpações da norma regida pela Lei 4.591/64, notadamente no que diz respeito ao desfazimento do contrato.

A mercê da própria disposição da lei específica, art. 32, §2º, que expressamente prevê a irretratabilidade e irrevogabilidade dos contratos de incorporação, os julgadores retiraram toda a segurança jurídica contratual ao permitir, equivocadamente, a desistência (Resilição unilateral) e exigir, ainda que a culpa do desfazimento do contrato decorresse exclusivamente do adquirente individual, a devolução de valores de forma imediata.

Esta visão individualista falhava em identificar que um empreendimento imobiliário não é composto da relação do incorporador com um único adquirente/consumidor, mas, na verdade, envolve diversas famílias e consumidores, que são prejudicados em benefício de apenas um, haja vista que, ao exigir a imediata devolução de valores, impacta diretamente no desenvolvimento da obra e nos recursos provenientes dos demais adquirentes.

A lei específica da incorporação não se equivocou ao estabelecer a irretratabilidade e irrevogabilidade, pois muito bem identificou que o contrato de incorporação não é um contrato individual ou simplesmente bilateral, mas um contrato coletivo, onde um grupo de adquirentes se compromete a participar de uma relação, pagando, cada um, uma parcela que comporá a construção de todo o empreendimento em benefício de todos.

Ao “defender” o adquirente individual, implicando-lhe direitos que excedem a própria legislação, as decisões prejudicavam dezenas de outros consumidores e famílias, cujo direito à conclusão da obra e de ter seus recursos direcionados à construção do empreendimento acabava prejudicado, ao verificar que esses recursos eram desviados em benefício de um indivíduo descumpridor do negócio jurídico e da relação coletiva, permitindo, apenas, retenções insuficientes ao efetivo pagamento das despesas incorridas pela incorporadora.

Ansiosos por uma definição e esclarecimento do tema, quanto à segurança das contratações, a população e o mercado se viram amparados pelo Poder Legislativo o qual, atendendo a essa demanda, aprovou a lei 13.786/2018, que alterou a Lei 4.591/1, estabelecendo parâmetros e penalidades para os descumpridores das obrigações contratuais, sejam eles o adquirente ou o incorporador.

Definindo limites, prazos e cláusulas obrigatórias, essa norma trouxe parâmetros objetivos e claros acerca das consequências do descumprimento contratual, permitindo ao adquirente estar mais ciente de seus direitos e deveres para, assim, realizar uma contratação saudável.

Diferentemente do que muitos críticos desse normativo insistem em apregoar, essa nova legislação traz muitas vantagens ao consumidor, quando determina informações que devem obrigatoriamente constar no quadro resumo do contrato, bem como ao estipular o direito de arrependimento do comprador em compras realizadas fora da sede da vendedora, e, ainda, graves consequências aos incorporadores que atrasarem suas obras, protegendo, sempre, a coletividade de adquirentes adimplentes e cumpridores do contrato.

O maior risco à boa aplicação dessa norma está na equivocada interpretação de diversos juristas que, com a ajuda dos efeitos propagados na internet, vêm, desde antes da promulgação da lei, divulgando um entendimento que diverge dos próprios conceitos do direito civil, mais especificamente acerca da palavra “distrato”.

Se proliferou entre os leigos do direito um entendimento de que o “distrato” se referiria a qualquer tipo de rescisão, especialmente à desistência. Esse equívoco decorreu de reiterados casos em que os adquirentes buscavam o incorporador indicando o desinteresse no contrato, e este último aceitava, em comum acordo, encerrar a relação.

O distrato é exatamente isto, um acordo bilateral onde ambas as partes aceitam encerrar a relação. No entanto, como na alta do mercado os incorporadores, em regra, aceitavam realizar um acordo bilateral de encerramento do contrato (distrato), os leigos passaram a entender que o “distrato” seria um direito líquido e certo do adquirente, o que não é verdade, vez que depende da concordância da outra parte.

A maior surpresa, no entanto, foi a multiplicação de artigos na internet elaborados por juristas, muitos deles atuantes nos mercados imobiliários, que passaram a utilizar essa nomenclatura, confundindo distrato (resilição bilateral) com desistência (resilição unilateral), baseando-se, equivocadamente, no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).

Destaque-se que sequer o Código do Consumidor, em seu tão utilizado artigo 53, permite a resilição unilateral ou desistência, mencionando apenas a hipótese de resolução contratual, que significa o encerramento do contrato por descumprimento de uma das partes.

É neste sentido que se faz especial destaque a importância do Judiciário nesta nova fase. Caberá a este ente a aplicação da norma de forma a desestimular o descumprimento contratual, protegendo a coletividade de adquirentes no desenvolvimento de seu sonho da casa própria.

Caberá também aos julgadores encerrar a celeuma que envolve o termo “distrato”, retomando o bom direito ao diferenciar desistência (resilição unilateral) de distrato (resilição bilateral), impedindo que, imotivadamente e por mera vontade unilateral, o indivíduo busque prejudicar toda uma coletividade.

É o que se espera: um Judiciário mais responsável pelo desestímulo da busca judicial de pacificação dos conflitos  e que incentive, enfim, a utilização das soluções negociais adequadas e extrajudiciais de composição da lide, respeitados os limites do contrato regido pelos ditames da lei que entrou recentemente em vigência  no ordenamento pátrio.

 

*Artigos divulgados neste espaço, não necessariamente correspondem à opinião da entidade.

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